STF passa por cima da Constituição Federal e, em decisão confusa, dá poder de polícia às guardas municipais.

Em julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 608588, realizado na quinta-feira da semana passada, 20, o Supremo Tribunal Federal disse que as GCM “podem fazer policiamento ostensivo e comunitário e agir diante de condutas lesivas a pessoas, bens e serviços, inclusive realizar prisões em flagrante”. Como a decisão é de repercussão geral (Tema 656), assim que for publicada todas as demais instâncias de Justiça devem seguir este entendimento quando se discutir atribuições das guardas municipais.

A decisão do STF, contudo, é bastante confusa. Na tese de repercussão geral firmada, os ministros dizem ser “constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas guardas municipais, inclusive o policiamento ostensivo comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstas no artigo 144 da Constituição Federal…”. E destacam: “Conforme o artigo 144, parágrafo 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional”.

No Artigo 144 da CF, a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio é exercida pela polícia federal (item I), polícia rodoviária federal (item II), polícia ferroviária federal (item III), pelas polícias civis (item IV) e pelas polícias e corpos de bombeiros militares (item V). As GCM são mencionadas no parágrafo 8º, apenas, com a seguinte redação: “Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a Lei.”

A tese é confusa porque, ao mesmo tempo em que autoriza as GCM a “fazer policiamento ostensivo e comunitário”, exige delas o respeito “às atribuições dos demais órgãos de segurança pública elencados no Artigo 144 da CF”. O STF dá às guardas a competência para agir, mas sem usurpar a competência legal das polícias militares prevista na Constituição Federal. Uma coisa não combina com a outra. É o mesmo que dizer a um jogador de futebol que ele pode driblar o adversário mas não pode “passar” por ele.

À época da Assembleia Nacional Constituinte que terminaria na promulgação da “Constituição Cidadã”, no dizer de Ulysses Guimarães, esta foi uma das grandes discussões quando o tema era segurança pública. O jurista José Afonso da Silva defendeu que o município não pode ter polícia (in Direito Constitucional Comentado) porque elas poderiam ser transformadas em “guardas pretorianas”. Em um país desigual como o Brasil, prefeitos poderiam fazer o que quisessem contra seus adversários políticos – na melhor das hipóteses – tendo um contingente armado ao seu dispor.

Um dia depois do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 608588, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), disse que vai mudar o nome da GCM para “Polícia Metropolitana”.

Polícia Municipal

No dia 6 de setembro de 2017, na Assembleia Legislativa de São Paulo, o midiático gestor João Doria anunciava que, a partir daquele dia, a GCM passaria a chamar-se Polícia Municipal. O deputado Coronel Telhada posicionou-se a favor do prefeito,elogiando a medida. O deputado Coronel Camilo criticou duramente a iniciativa explicando que os guardas municipais não são policiais militares.

Menos de um mês depois, ao julgar uma “Ação de obrigação de não fazer, com pedido de tutela de urgência” impetrada pela DEFENDA PM – Associação dos Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar, o juiz de Direito Sérgio Serrano Nunes Filho, da 1ª Vara da Fazenda Pública, determinou que o Município de São Paulo não utilize mais a nomenclatura ‘Polícia’ para designar a ‘Guarda Civil Metropolitana’ no prazo de dez dias, sob pena de multa de R$ 30 mil para cada descumprimento e apuração de responsabilidade”.

A DEFENDA PM argumentava que as GCM não são órgãos de segurança pública já que não estão no Artigo 144 da Constituição Federal, que trata do assunto. As guardas são mencionadas no § 8º do Artigo 144. Ao tentar impor identidade à Guarda Civil Metropolitana, dizia a DEFENDA, a Prefeitura invadia competência exclusiva do Estado. A Lei Estadual 616/1974 preconiza que “compete à Polícia Militar, com exclusividade, o policiamento ostensivo fardado”. Ao acatar a argumentação, o magistrado esclareceu que “o artigo 144 da Constituição Federal distinguiu bem a área de atuação das polícias e das guardas municipais, dando a esta nome diverso daquelas em razão da nítida função ali diferenciada”.

Chama à atenção um parágrafo da decisão do juiz Sérgio Serrano Nunes Filho: “Face tal arcabouço normativo jurisprudencial e devendo o administrador respeito ao princípio administrativo da legalidade estrita, só podendo fazer o que determina a lei, não lhe caberia, em tese, acrescentar a tal órgão municipal a denominação em discussão, que alude à função que constitucionalmente não cabe à Guarda Civil Metropolitana, gerando confusão na identificação das forças de segurança perante a população”.

O STF passou por cima de tudo isso e proferiu uma decisão dúbia.